segunda-feira, 17 de maio de 2010

Os gatos


Os gatos me perseguem. Sempre estão lá, chegando numa frase de camisa “Just my cat understand” me antes mesmo do dono da camisa ou se fazendo notar na carteira rosada que um amigo me mostra sem qualquer inibição. Os gatos também não são inibidos, mas eu tenho vergonha dos gatos. Nunca deixo a porta aberta para eles quando estou no banheiro e sempre tranco a porta do quarto quando é preciso que permaneça perto demais do meu corpo. Os gatos não estranham seu corpo, apenas se lambem todo sem qualquer necessidade de portas fechadas ou solidão.

Eu tenho um gato que não me respeita. Ele me ama, com certeza me ama, mas sabe que o melhor a fazer não é me mar, mas conquistar coisas que definitivamente não são suas; me ultrapassar, subir no sofá, na minha cama e se esticar, mostrar que pode me contornar e, ao mesmo tempo, estar atento para me capturar quando eu quiser fugir. Sim, esse gato me ama, mas aprendeu com os outros gatos que não pode, de maneira alguma, ser menos feliz do que eu.

E eu aprendi também algumas coisas com o gato e seus parentes egoístas de bigodes finos e unhas sempre afiadas. Eu comecei a perceber que a natureza da felicidade é felina e que precisamos, às vezes, nos esticar e avançar à pessoa que está ao nosso lado. Descobri também com o gato assanhado que nem sempre podemos ser salvos por portas e que é insuportável estar com alguém que, por causa da minha presença, é muito mais contente e completo do que eu; logo eu que sou dono de uma gato que me xinga discretamente e que sempre está por trás de mim e no meu calcanhar, mordendo-o.

Hoje, olhando fixo para o gato, encontrei maneiras de me observar como um grande olho analisando felinos – com desconfiança. E também admiração. Afinal, um gato sempre pode dar um pulo e não cair; ser derrubado e não cair, apenas chegar ao chão e sair andando. E o gato tem ainda a maturidade perfeita do partir: quando quer ir, ele somente vai (sem “adeus” em forma de miados) e volta quando sente que você está disponível para ser usado (sem um miado sequer que expresse desculpa).

Gatos também nunca sorriem e o único que sorri (o de Alice no País das Maravilhas) parece um demônio, não um gato.

O gato é algo que está por um momento e em relação ao qual não se pode exigir muito. Você só pode amá-lo no ali, sem pensar em coisas adiante. Nada de planos, esqueça. Não se pode chegar em casa esperando que ele, o gato, esteja te esperando. Gatos não esperam, eles vivem algo de água. Uma água sem laços que te enlaça e lambe, acaricia, cai sem cair e vive com você, sem viver; escorre por fim e vai-se para qualquer lugar. Ou fica, intacto, vivendo uma vida que ele (ou ela, se for uma gata) construiu dentro da casa que não é dele (ou dela), com coisas completamente alheias.

Eu moro no terceiro andar e acho que talvez um dia meu gato começará a se cansar dessa sua vida construídas de almofadas e lençóis e então irá se atirar daqui de cima. Não por depressão ou falta de carinho, mas porque vai se sentir cheio de mim e, como a porta da sala estará fechada, não haverá solução que não seja a janela aberta. Mas não quero me preocupar com isso agora. Gatos sobrevivem a tudo, já eu posso morrer com um “não” rompendo pelo telefone como um miado rasgado despencando no infinito de três andares.

domingo, 2 de maio de 2010

Aquela menina


A minha vizinha está ali
E eu cá, com esses livros e essas leituras
A vizinha se coloca sentada
No parapeito da janela do terceiro andar
Ela se senta e, ouvindo uma música breguíssima,
Balança a cabeça pra lá e pra cá
Cantando feliz alguma coisa sobre o destino
De uma infeliz qualquer
Sentada numa calçada e esperando por alguém
Que talvez não chegue
Ela não para de cantar
E coloca mais uma vez e ainda outra
A mesma música
E sua voz atravessa agora a própria canção
E se estende (Em desespero?) até o meu quarto
Será que ela e a menina da música estão realmente aflitas
Ou tudo é apenas zombaria
E ambas, no final das contas, estão mais em paz do que eu
Que tenho aqui, na mesa, todo esse conhecimento
Em palavras que às vezes quero jogar pela janela?
A vida dela, com essa música irritante,
É de uma simplicidade que dói e me faz pensar
Ela se coloca ali sem medo
De pernas abertas na janela sem grades
De um terceiro andar que pode matar
Ela é quase como um pássaro
Segura, loucamente segura
E de tanto não ter medo
Talvez se caísse, não morresse
E se, de propósito se jogasse,
Ninguém considerasse aquilo um suicídio
E sim apenas um capricho
De alguém que decidiu parar a vida
Quando bem quis
Sem ser triste, nem muito feliz
Alguém que apenas deixou de viver
Como agora deixou de cantar.